Invisíveis cantos.

terça-feira, 1 de março de 2011

Anáfora









Olhou ao redor. Devagar, ela conseguiu inclinar a cabeça em posição de prece. Não conseguia orar mas Deus entendia o que o ângulo, que a fronte caia, queria dizer. O Amor estava à sua volta, daquela forma violenta. Ele estava. Nem havia tempo para estudar os detalhes. Ela era virginiana e, portanto os detalhes são cruciais. Sem ter o domínio deles ela ficava enfurecida. Como o Amor podia chegar assim, sem ao menos um aviso antes? Ela tinha raiva do amor por isso. Levantou-se e vestiu-se num susto. O dia ardia. - não tenho tempo para amar tão doce assim - pensou com pressa. Todas as manhãs ela preparava o mesmo café forte e colocava à mesa o mesmo pão de ontem. Muito difícil desfazer dessas migalhas - mastigou uma terça passada. Ela sentia que o Amor a amava mas não conseguia corresponder à altura. E isso era raiva, ' eu não posso ainda'. Na testa se formava um vínculo forte entre as sobrancelhas mostrando que 'luxo' era uma palavra essencial. Por que aquela vontade de chorar se os pregos estavam apertando a madeira de maneira firme? Se as flores estavam molhadas e as contas estavam pagas? ela entendia a resposta, só não aceitava tão bem. Era só deixar acontecer, porque acontecia mesmo ela dizendo ainda não aguentar. ' Não, não isso', suspirou como fêmea. Procurava um poema da Adélia quando a garganta fechava. Tinha dias de Hilda, outros de Ana, mas quando estava apertada em pranto era Adélia que a salvava com seu temor a Deus. Outra vez Deus. Percebeu que estava perto. Então era isso. Deus perto. A aproximação do céu encharca.
Caiu em nuvens.
E choveu.





Ás seis da tarde
as mulheres choravam
no banheiro.
Não choravam por isso
ou por aquilo
choravam porque o pranto subia
garganta acima
mesmo se os filhos cresciam
com boa saúde
se havia comida no fogo
e se o marido lhes dava
do bom
e do melhor
choravam porque no céu
além do basculante
o dia se punha
porque uma ânsia
uma dor
uma gastura
era só o que sobrava
dos seus sonhos.
Agora
às seis da tarde
as mulheres regressam do trabalho
o dia se põe
os filhos crescem
o fogo espera
e elas não podem
não querem
chorar na condução.
 
 
.Marina Colasanti

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O desconexo me elucida. Sinto um prazer de sábado quando sinto o aroma da loucura. Sei que não é fácil. Sei. Às vezes eu queria não saber e ter a benção da lucidez. No entanto eis-me aqui, forjada, leoa, musa de fogo. Ouro, olhar, branco, bracelete, unha vermelha.