Invisíveis cantos.

domingo, 19 de outubro de 2014

Desvendar

Quando eu morava no cimento
andava sem perceber os passos
com a sensação certeira e púgil
de que precisava correr e fugir

Quando eu pertencia ao concreto
em meu peito apertado (sem espaço)
vivia um pássaro acorrentado
e protegido por airbags importados

Só entendia o que vinha dentro de caixas
hermeticamente embaladas por mãos escravizadas

Quando eu bebia na cidade
os vinhos mais encorpados e secos
da minha boca escorriam sonhos
dentro de uma sede infinita e atéia

Quando eu dormia dentro da parede
acampava dentro da matrix escura
sem estrelas cadentes, nem naves estelares
caminhar atávico e frio, cadeados

Só dormia por dormir
para derreter a gordura da carne e das entranhas

Quando cheguei o sol ardia os olhos
mas não impediu que  eu enxergasse
a minha sombra que me batia à porta da vida
de uma maneira irreversível

Só assim no meio das árvores
compreendi o mais iluminado dos meus dias
em uma espécie de dança nativa
muito antes do muro de Berlin ter escorregado no som do tambor


Que só vivo para esperar a lua aparecer cheia no céu do peito
divinizando o esquecido do corpo.
( ainda há tempo de respirar)



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segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Ori/entes

Para atravessar comigo o deserto do mundo tenho as pérolas mais lindas.
Que me adornam, que me norteiam, que me transmutam.
Por vocês deixo meu reino e minhas noites de silêncio
pérolas esféricas são meu Oriente.
Cá fora fico nua
mas teus gestos me vestem.


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À minha espera





Penso-te nem mulher
nem carne
uma breve folha
em branco
Para descansar meus versos
feitos a fogo e espinhos

E só assim entendo a roseira.

domingo, 17 de agosto de 2014

Escorrer

Tenho muito mais que areia no estômago, esta rocha. Tenho cachoeira no cérebro e um lirio no peito. No olho carrego um oleandro. No meu coração não há bem mais que uma encosta de montanha e na mente há luz. Em minha garganta, um pássaro. Moro em uma casa de águas.


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Catedral

Eu queria ser um fio do bigode da Frida
uma nota do minueto em g do Bach
a perplexidade do espanto
a teia da aranha
a língua do sapo
a margem do rio
o gene filete de sangue que separa o macaco do homem
a dor no bico dos seios rachados e mesmo assim oferecidos



O fracasso da linguagem, o silêncio
o fio da navalha
o olhar do mendigo
eu queria ser um texto clareciano, a caverna de Platão
um filho que não nasceu
o ovo e também a galinha
uma figura hieroglífica, a esfinge, a serpente.



Só quando não tenho construção eu me aproximo do que sou.



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sábado, 9 de agosto de 2014

Ode ao plasma de meu pai, em 2014








Como já contei, eu descaradamente fingia que dormia no carro só para ele me pegar no colo e me colocar na cama, me ajeitar, me aquecer na coberta cheirosa. Mas no fundo das almas das coisas todas, eu não havia contado é que era para muito mais que isso que eu fingia dormir e ser carregada. Era para sentir o batimento cardíaco do meu pai bem perto do ouvido. E eu vou tentar explicar o que é o batimento cardíaco de um pai para uma filha como eu. O som das batidas do coração do meu pai sempre foram muito importantes para mim, sons vitais que eu precisava ouvir todos os dias. Era nesse instante desse som, que eu pedia infantilmente a Deus, ' não deixe parar, não deixe', era o meu mais repetido insistente forte pedido de reza de criança, esse, pelas batidas do coração do meu pai, para que não parassem nunca de bater.

Cada 'tum-tum-tum' da corrente sanguínea, plasma vivo de comunicação entre mim e ele, que eu ouvia em essência, me dizia em uma liberdade de expressão que escapula a palavra. O que esse batimento me dizia tanto e eu ouvia, era presença, proteção e força, era coragem, era 'o que importa, filha, é quem lembra de você e te dá um presente e não o presente', era o 'o homem bom não sobrecarrega o outro', era beijo arranhado de barba, era nadar na piscina comigo, 'cuida sempre da tua irmã', 'vai ver tua vó, beija teus tios', ' isso não é nada vai passar, levanta!', era a solução de todos os meus problemas, era o amor pela minha mãe, era o riso solto com piadas bobas entre amigos, o 'olha como o mundo é lindo', era chão, teto, pão, comida, era fio, fonte, alma, porta aberta ao sonho, condutor, guia, era Cura. E assim do cálice do coração de meu pai que eu recebia exatamente o que precisava para que eu me tornasse o que sou. E pequena eu rezava, rezava... todos os dias. Com o acordar, não o do sono mas o da vida, pude entender hoje que essas batidas nunca cessarão, não têm fim, e o meu temor que elas parem é desnecessário porque batem em outra dimensão, naquela em que reside o Amor. E Este é o Eterno. 'Ah, não me castigue mais na escuridão da infância, Senhor, me deixe ver, me deixe ver! Que o Eterno é a nossa maior verdade'. 

Mas por tudo isso eu rezava e diz a lenda que reza de criança é canto de anjo agradecendo a presença de Deus na Terra.




Pai, teu coração bate dentro do meu peito. E os meus filhos ouvirão.


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segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Via crucis

Drinking tea in London during the Blitz, June 1941.



Sou mulher, negra, gay, prostituta,
miserável, palestina, apedrejada

nas ruas, nos dedos, nas sombras recolhidas
dos olhos úmidos, sem voz

verto especiarias nos lábios enquanto rezo 
sacudo minhas asas de poeira
para embalar o filho morto

dentro da garganta.



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domingo, 8 de junho de 2014

The pleasure






arte- em- almas despidas

vestidas de alma
almas sem vestes
penas na pele.



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sábado, 31 de maio de 2014

Post-it de geladeira

Gabrielle Ray in "Lady Madcap", 1905






sou absolutamente antiga, Renoir
e não lanço fora o amor
( o amor me lança dentro)
não falo francês, não tenho tumblr
e tenho ask do anonimato
mas tenho paixões descaradas
perdoa-me, Renoir
a minha ancestralidade corcunda
perdoa-me as pernas e o mistério
e deita-me na mulher do teu quadro.



toma um vinho comigo?



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sábado, 5 de abril de 2014

Canción para Frida, soy este sal






Quiero ( besar) 
tu 
desamparo.



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sábado, 29 de março de 2014

Coisa que me foi dada, sigilosa







Maria Silêncio, minha gata siamesa é filha do Sossego e neta da Solidão. Intransponíveis olhos azuis silêncio do mar, aquele, o de dentro. No entanto, quando todos se afastam ela vem, silenciosamente. Agarra-me as pernas com o lombo cru de um pêlo alvo e macio. Sem cio, beija-me com um mudo miado e sussurra-me o seu terceiro Nome.




Gata-me.

Pequenas sugestões e receitas do espanto antitédio para senhores e donas de casa durante o carnaval





I.
Pegue um nabo. Coloque duas ou três palavras dentro dele, por exemplo: bastão, ouro, amplidão. Chacoalhe. Você não vai ouvir ruído algum. É normal. Ai ajoelhe-se com o nabo na mão e diga:
“Com o bastão que me foi dado
Com o ouro que me foi tirado
E sem nenhuma amplidão
De conceitos e dados
Quero nascer brasileiro
E poeta.”
Quem te ouvir vai ficar besta.

II.
Colha um pé de couve e dois repolhos. Embrulhe-os. Faça as malas e atravesse a fronteira. Ta na hora.

III.
Pergunte ao seu filhinho se ele quer laranja descascada de tampinha ou de gomo. Se ele disser que quer laranja descascada de tampinha, diga que um menino bem educado sempre escolhe a de gomo. Se ele começar a chorar, chupe você a laranja. De tampinha, naturalmente.

IV.
Enfeite a mesa com flores. Compre um peru. Feche as crianças no banheiro. Antes de começar a ceia, convide seu marido para dançar ao redor da mesa (não mexa com o Peru). Inopinadamente pergunte se ele gosta de trufas. Se ele disser que sim, gargalhe algum tempo atrás da porta e diga que “trufas não tem não, amorzinho”.

V.
Compre manteiga. Passe-a nos dedos (esqueça Marlon Brando). Chupe-os. E diga em tom de oração: Que vida solitária, meu Deus! (Contenha-se).

VI.
Compre uma língua de tucano (é uma umbelífera), uma língua de vaca (Chaptalia nutans é seu nome cientifico), um lírio branco (Lilium candidum), dois caquis (não é cáqui, não vá comprar o brim da cor dos caquis), ferva durante cinco minutos. Depois jogue fora, olhando para o alto. É uma simpatia para você não dormir.

VII.
Corte um saco em pequenos pedaços. Um de estopa, evidente. Embrulhe vários ovos, um por um, em cada pequeno pedaço de estopa. Pinte caras descarnadas, dentes pontudos e beiços vermelhos na cara dos ovos (sempre esses de galinha ou de pato, é desses que eu estou falando). Quando alguma das tuas crianças começar a pedir aquelas coisas caríssimas e imbecis que são sugeridas na televisão, cubra-se de negro a noite, use tintas fosforescentes para ressaltar a cara dos ovos (aqueles) e quebre-os um a um nas pequeninas cabeças dizendo com voz rouca: parem de pedir coisas impossíveis a sua mãe, seus canalhas!

VIII.
(Se você for PhD, leia até o fim. Se não, pule esta).
Faca um buque de orelhas. É fácil. Peça apenas uma a cada um de seus dez amigos íntimos. Diga-lhes que é para uma causa nobre. Se perguntarem qual causa (não confundir com Cáucaso, é outra coisa), diga que você precisa mandar o buque para tua velha e querida preceptora inglesa (quando você tinha quinze anos, lembra-se?), que arrancou as tuas duas porque você insistiu inquebrantável durante doze horas seguidas que aquela primeira frase de Marco Antonio para o povão era, na “tua” tradução, “Emprestai-me vossas orelhas”. Todos concordarão, acredite, com o teu pedido. Ainda mais porque todo mundo sabe que “Lend me your ears” quer dizer isso mesmo.

IX.
Se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de canfora e uma lata de caviar e coloque ao lado seu revólver. Em seguida, coloque a pedrinha de cânfora debaixo da língua e olhe fixamente para a lata de caviar. Só então engatilhe o revólver. (É bom partir com olorosas e elegantes lembranças. Atenção: não de um tiro na boca porque a pedrinha de canfora se estilhaça)


Hilda, magnífica Hist


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sexta-feira, 28 de março de 2014

Chilrear



coisinha estranha era a voz fininha
daquela mulher inteira
ninguém entendia, tão fininha
e tão inteira
o que ninguém sabia é quando havia
finura tão fina
os pássaros voavam e os peixes escapavam
dos prados, das redes, dos cais
das mãos dos homens
coisinha estranha era a voz fininha
daquela mulher inteira
os cabelos não combinavam
nem o recorte do queixo
nem o caminhar
todo mundo estranhava o tamanho sonso
e a finura da voz tão fininha
sirene de ambulância, artista mambembe
tesão do talvez, salta a língua
ambulante, sonâmbula, proverbial
estridente e fininha

mas consolava.





quinta-feira, 20 de março de 2014

Urge

Ariadna que te espia
giz pastel seco e aquarela

terça-feira, 18 de março de 2014

Da verdade e dos olhos

Matheus, vinte anos
verão de dois mil e quatorze



Vou contar uma história de pescador. Feche os olhos para que se possa ouvir o mar melhor. Vou contar sobre um rapaz que pesca as entrelinhas, um anzol de Lacan. Um belo rapaz que prepara a isca com muita paciência e silêncio: 'xiu', diz com o olhar, 'as ideias voam, e o engano é o que se faz morrer pela boca'. Pescador poeta, porque o pensamento desliza como peixe quando não se pega com o coração. Não tem boca pra discursos, nem tão pouco explanações, por isso gosta de pescar é com os sentidos. Profeta, filósofo. Ele pesca pela boca do médium, do professor. E também do revolucionário. 


Mar em festa! Mar em festa!


Águas entorpecentes, sedutoras.
Por muito tempo, aos meus olhos de terra, pensava que o pescador deturpava os fatos, que acreditava no que inventava e que delirava aos golões. Aos poucos que fui percebendo a amabilidade da arte de pescar e, que não era para qualquer um. Só para os sensíveis. Pescador onírico, amigo de Morfeu. Lírico, delírio. Também amigo do oceano porque é coletivo, cardume. Futurista, enxerga o vento antes de tocar os sete mares.
Pescar é arte de quem sabe.

É quem se amarra no mastro do navio mas mantém livre suas orelhas 
para ouvir o canto da sereia.


Peixes livres
Mar para todos.
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terça-feira, 4 de março de 2014

Carta Revolucionária

giz pastel seco fabiana casalecchi



Acabo de perceber que o que está em jogo sou eu
Não tenho outro dinheiro de resgate, nada para
quebrar ou trocar, a não ser minha vida
meu espírito parcelado, em fragmentos, esparramado sobre
a mesa de roulette,
eu recupero o que posso
só isso para enfiar embaixo do nariz do maitre de jeu
só isso para jogar pela janela, nenhuma bandeira branca
só tenho minha pele para oferecer, para fazer minha jogada
com esta cabeça imediata, com aquilo que inventa, é a minha vez
enquanto deslizamos sobre o tabuleiro, e sempre pisando
(assim esperamos) nas entrelinhas.


Diane di Prima
Versão de Miriam Adelman

Quase na frente dos olhos


estive no entreolhar de minha mãe e de meu pai, na bilheteria do cinema, estive também no carreto carnavalesco que carregava os sonhos de meu avô, fui a timidez de minha avó. Minha filha me carrega no pulo da lagoa. Mel e abelhas estiveram comigo no alto daquela montanha antiga, fui o grito de dor no pássaro que não conseguiu voar. O mar quando se abriu estava no meu peito. Eu sou a espera da semente no intervalo da flor e o nada da semente seca. Não há paredes que consigam oferecer casa ao tempo ( feito que é lugar, local e não memória). São dez horas de um verão escafandro

e há rachaduras infinitas.







Estava entre as torres e o homem. Eu e ele.
E no instante, partiu-se o rio escuro da memória
E um ruído de claras persianas
Invadiu-nos o peito e os ouvidos.
Eram ares perdidos retornando. Grandes pássaros,
Asas e rumo de obelisco. E de prumo era o vôo.
Grande vôo, cobrindo-nos o peito e os ouvidos.
Veio um silêncio feito de altas ramas
E as mãos se abriam sem estupor antigo.
Era além do pudor o peito em chama.
(trajetória poética do ser, h.h)

segunda-feira, 3 de março de 2014

Desquerer

Irei um dia ver meu mar na curva do rio? Ou apenas rolarei para ele à noite, em silêncio: o golfo do México é uma eternidade.
Jack Kerouac




Tudo bem, meu bem, já amanheceu e ainda não morremos, o que é linha sub-reptícia. Pego ainda a mesma xícara de café e sou castigada pelos mesmos uivos. Era noite e eu não te via, montado em teu cavalo descendo no escuro, numas aguadas ( eu era sereia e sabia). Mas não usei minhas nadadeiras atrás de você, usei vasta os seios guarda-sóis feitos na solidão de toda mulher. Os homens de bem me perguntaram o que foi feito da vida. Ela está parada, perdida na minha boca e que o melhor é partir. Saiba que quando estou contigo não sou vista. O que está aos olhos é sempre aquela outra se não eu. Sou hoje todos os meus nomes perecíveis nula palha vento fava candeia.  Mas é certo que sempre na dura hora, a agitação das águas, chama é o meu nome.
E a morte não me mancha.




                                         Então sou Eva
                                  a primeira mulher do mundo.




                                     .

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Preparar-se em desamor

Selfie fabiana


                 


II

Meu medo, meu temor, é se disseres:
Teu verso é raro, mas inoportuno.
Como se um punhado de cerejas
A ti te fosse dado
Logo depois de haveres engolido
Um punhado maior de framboesas.
E dirias que sim, que tu me lembras.
Mas que a lembrança das coisas, das amigas
É cotidiana em ti. Que não te enganas,
Que o amor do poeta é coisa vã.

Continuarias: há o trabalho, a casa
E fidalguias
Que serão para sempre preservadas.
Se és poeta, entendes. Casa é ilha.
E o teu amor é sempre travessia.
Meu medo, meu terror, será maior
Se eu a mim mesma me disser:
Preparo-me em silêncio. Em desamor.
E hoje mesmo começo a envelhecer.

H.H.



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domingo, 2 de fevereiro de 2014

Das maravilhas



Você é a criatura mais subversiva do teu país, Alice. Não falo das curvas das alças da xícaras tortas que bebe o teu chá mais amargo, nem da tua boca que carrega os filetes de dentes alinhados e coerentes e que mordem transgressoramente o pedaço de um bolo muito doce. Nem das luvas de pelica branca que usa para cuidar do teu jardim. Não é isso. Tudo isso seria muito pouco. Bico de corvo.
Você subverte logo o fio da navalha, o meio do caminho, o breu do abismo.
Você subverte a alma.





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Quem sou eu

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O desconexo me elucida. Sinto um prazer de sábado quando sinto o aroma da loucura. Sei que não é fácil. Sei. Às vezes eu queria não saber e ter a benção da lucidez. No entanto eis-me aqui, forjada, leoa, musa de fogo. Ouro, olhar, branco, bracelete, unha vermelha.