Invisíveis cantos.

domingo, 17 de agosto de 2014

Escorrer

Tenho muito mais que areia no estômago, esta rocha. Tenho cachoeira no cérebro e um lirio no peito. No olho carrego um oleandro. No meu coração não há bem mais que uma encosta de montanha e na mente há luz. Em minha garganta, um pássaro. Moro em uma casa de águas.


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Catedral

Eu queria ser um fio do bigode da Frida
uma nota do minueto em g do Bach
a perplexidade do espanto
a teia da aranha
a língua do sapo
a margem do rio
o gene filete de sangue que separa o macaco do homem
a dor no bico dos seios rachados e mesmo assim oferecidos



O fracasso da linguagem, o silêncio
o fio da navalha
o olhar do mendigo
eu queria ser um texto clareciano, a caverna de Platão
um filho que não nasceu
o ovo e também a galinha
uma figura hieroglífica, a esfinge, a serpente.



Só quando não tenho construção eu me aproximo do que sou.



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sábado, 9 de agosto de 2014

Ode ao plasma de meu pai, em 2014








Como já contei, eu descaradamente fingia que dormia no carro só para ele me pegar no colo e me colocar na cama, me ajeitar, me aquecer na coberta cheirosa. Mas no fundo das almas das coisas todas, eu não havia contado é que era para muito mais que isso que eu fingia dormir e ser carregada. Era para sentir o batimento cardíaco do meu pai bem perto do ouvido. E eu vou tentar explicar o que é o batimento cardíaco de um pai para uma filha como eu. O som das batidas do coração do meu pai sempre foram muito importantes para mim, sons vitais que eu precisava ouvir todos os dias. Era nesse instante desse som, que eu pedia infantilmente a Deus, ' não deixe parar, não deixe', era o meu mais repetido insistente forte pedido de reza de criança, esse, pelas batidas do coração do meu pai, para que não parassem nunca de bater.

Cada 'tum-tum-tum' da corrente sanguínea, plasma vivo de comunicação entre mim e ele, que eu ouvia em essência, me dizia em uma liberdade de expressão que escapula a palavra. O que esse batimento me dizia tanto e eu ouvia, era presença, proteção e força, era coragem, era 'o que importa, filha, é quem lembra de você e te dá um presente e não o presente', era o 'o homem bom não sobrecarrega o outro', era beijo arranhado de barba, era nadar na piscina comigo, 'cuida sempre da tua irmã', 'vai ver tua vó, beija teus tios', ' isso não é nada vai passar, levanta!', era a solução de todos os meus problemas, era o amor pela minha mãe, era o riso solto com piadas bobas entre amigos, o 'olha como o mundo é lindo', era chão, teto, pão, comida, era fio, fonte, alma, porta aberta ao sonho, condutor, guia, era Cura. E assim do cálice do coração de meu pai que eu recebia exatamente o que precisava para que eu me tornasse o que sou. E pequena eu rezava, rezava... todos os dias. Com o acordar, não o do sono mas o da vida, pude entender hoje que essas batidas nunca cessarão, não têm fim, e o meu temor que elas parem é desnecessário porque batem em outra dimensão, naquela em que reside o Amor. E Este é o Eterno. 'Ah, não me castigue mais na escuridão da infância, Senhor, me deixe ver, me deixe ver! Que o Eterno é a nossa maior verdade'. 

Mas por tudo isso eu rezava e diz a lenda que reza de criança é canto de anjo agradecendo a presença de Deus na Terra.




Pai, teu coração bate dentro do meu peito. E os meus filhos ouvirão.


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segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Via crucis

Drinking tea in London during the Blitz, June 1941.



Sou mulher, negra, gay, prostituta,
miserável, palestina, apedrejada

nas ruas, nos dedos, nas sombras recolhidas
dos olhos úmidos, sem voz

verto especiarias nos lábios enquanto rezo 
sacudo minhas asas de poeira
para embalar o filho morto

dentro da garganta.



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O desconexo me elucida. Sinto um prazer de sábado quando sinto o aroma da loucura. Sei que não é fácil. Sei. Às vezes eu queria não saber e ter a benção da lucidez. No entanto eis-me aqui, forjada, leoa, musa de fogo. Ouro, olhar, branco, bracelete, unha vermelha.