Invisíveis cantos.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Des folha-me

Não, não há razão de espanto: o milagre existe: o milagre é uma
sensação. Sensação de quê? de milagre. Milagre é uma atitude assim
como o girassol vira lentamente sua abundante corola para o sol.
O milagre é a simplicidade última de existir. O milagre é o riquíssimo
girassol se explodir de caule, corola e raiz - e ser apenas uma semente.
Semente que contém o futuro.

Clarice Lispector
[Um sopro de vida]



Klimt





No meio da fuga você aconteceu. E foi se tornando o meu lado esquerdo
sem mesmo o meu direito entender. Eu, que sempre compreendi tudo e
muito mais, fiz olhos poucos e ouvidos moucos. Talvez por sentir
quieta-água-profunda. Pela primeira vez, deixei. Tudo aos pouquinhos,
você me aconteceu aos pouquinhos. Fui pensando em você apesar de não
sentir tua falta. De me gostar intacta, cômoda sensação de fim. Nem
tua presença atrapalhada preenchia o meu nada insubstituível e
chato. Mas você foi ficando. O alívio foi justamente perceber que eu
não queria o placebo e, nem muito menos nenhuma antiga máquina de guerra que
atirasse longe meus projécteis inúteis. Você foi juntando meus baixos
metais. Eu deixei. E sabia que deixava, o alívio. Ando bem, apesar do
trancos dos meus saltos nos teus buracos frios. Dos teus problemas
sérios. Você foi acontecendo, rotina lenta, ansiedade em
beijos-borboletas. Ainda bem. Muito bem.


- O domingo tá acabando.
- Melhor assim.
- Gosto de fumar meu último cigarro do maço num domingo.
- Isso é mania. Velho que tem tique e mania.
- Ah, você gosta dos meus cabelos grisalhos.
- Gosto. Mas essa sensação não me deixa.
- O quê?
( pausa-caminho transverso)
- Só estou cansada.
- Vamos comer pipoca doce de arrozinho?



Aos pouquinhos.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Dois mil e nove



Esse ano merece uma paz, agem. Um rito, a Deus. Como dizer de coisas que não se dizem.
Ela se encorajava pensativa, pois coragem era seu nome. Tinha
entendido isso em uma manhã de neblina úmida de outras terras, onde
ela perfumou como uma flor é feita. O processo de viver é feito de
erros que te conduz ao vazio, te conduz ao vazio e te conduz ao vazio.
Susto. É no vazio que ela se deparou com o que É viver (não
comparável). Estado de sítio, revelação. O vazio conseguiu numa fração
de segundos que durou exatamente seis meses, tudo o que ela sempre
quis possuir: o seu modo de ser. Ano destruidor. Derrubou as suas
antigas torres gêmeas.
Ela então, seguiu. Era cedo demais para sentir tanto.


'Amo tanto e de tanto amar
Acho que ela é bonita
Tem um olho sempre a boiar
E outro que agita'



E foi assim que ela suportou aprender a
ser amada e amou. Em dois mil e dez verdades.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Carta para dois olhos



Existem em todo o homem, a todo o momento, duas postulações
simultâneas, uma a Deus, outra a Satanás. A invocação a Deus, ou
espiritualidade, é um desejo de elevar-se; aquela a Satanás, ou
animalidade, é uma alegria de precipitar-se no abismo.

Charles Baudelaire







Essa é uma carta de amor. Limpe todas as energias drummondianas da tua
aura e me leia. Ou ouça. O que vou contar é sobre um olho e mais um,
formando dois. Dois olhos que enxergam juntos tudo que pode ser
visto. E também aquilo que não se vê. Dois olhos, um de cada um.
Entendem? Não é tão fácil explicar aquilo que muito pouca gente tem,
sequer sonha possuir, pela própria imagem subjetiva imposta pelas
telas podres da mídia explicando o amor de novela das oito.
Bem  mas aí é papo para jornalista que precisa ascender logo e descolar um emprego engessado na globo. Sempre achei que somente com nossos olhos podíamos sentir o mundo e que bastava, e
que era lindo. Mas não, o mundo visto pela ótica tua-minha é maior.
Quando nossos únicos dois olhos vêem, o mundo se faz intenso demais como
uma café forte que abraça. É isso, nos sentimos abraçados pelo amor. O
amor nos cobre quando nossos dois olhos estão no mesmo rosto. Quando
você tem dois olhos, você pode ver a chuva cair nas folhas do limoeiro
à tarde, em uma rede. Só com esses dois olhos chove. Você que já foi
chovido molha o que eu digo agora.
Quando você tem dois olhos você
pode ter dois quartos que depois se tornam um. E nesse quarto, com
seus dois olhos você chora Modigliani caindo o pano de Jeanne, nua de
olhos-alma-toda, até mesmo a epifania de Utrille ao terminar a obra
e, aí rirmos depois das lágrimas. Dos nossos dois olhos. Quando você
tem dois olhos você pode ver além das grades da jaula, pode então ver
o que não se vê, olhando o olhar estático de tão humano dos macacos num zoológico de
um momento ilógico ( e porque?) da tua vidinha de domingo oco. Quando
você tem dois olhos você se transfigura em claricecortazar na cama, no
quarto de quatro, tal qual Jesus no Monte das Oliveiras transfigurando
Moisés e Elias para um bando de apóstolos cegos. E por tocar em
cegueira vou também ao desespero de quando se tem dois voltar ao um.
Você pode gritar pupilas novas, buscar enlouquecido no teu baú
sujo-casa-escura de memórias outro olho. O outro olho nunca está lá, nunca esteve,
porque ele só acontece uma vez. Deprimente essa vasculhação no
passado pensando: ' sim, eu tinha um outro aqui que me servia,
onde-foi-parar?' De repente você foca para frente e a luz-breu não te
mostra nada. Sim, o novo é nada para quem tem um olho arrancado.
Quando se arranca um olho de dois se lesa o nervo e, qualquer babaca
que tem um curso merda-superior-incompleto sabe: um nervo-olho-dois
destruido nunca mais recupera a visão-dois. Eu tinha subido a montanha
quando um olho me foi arrebatado. Arrebatamento me fez subir tal feito
a expressão, tinha morri do subir montanha. O pico mais alto do
estado. Deus, eu te quero tanto. Não me achem insuportável se fico dizendo
essas coisas e sei que-li-lispector-demais. Não existe esperança verde
para quem dois olhos teve e não soube. O que quero contar é que já
tive dois olhos.

Hoje, só me resta um.

Um látego

Me dá a tua boca para eu dizer:
'Vem te beijar'
e assim
você vai sentir
o
que
é bom.

( das coisas boas da vida)

Eu tenho um pássaro azul, que vez ou outra, me sangra os lábios. Com
um beijo de canto de boca.

Balangandans


As orelhas brincam seus brincos enquanto ouvem o vento sussurrar:
'quem é você, mulher?'
O que Ela responde faz o vento virar sopro.

Só.

Um canto

Meu silêncio fotografado forma com nitidez cega o meu perfil. Por fim.
Se eu soubesse onde esta o meu começo não me perderia tanto. Não. É
isso. Perder o fio da meada, Ariadne.
Dourada e triste.

(Da linha com dedicatória da testa até o queixo açude de lágrimas, a
estrada do meu silêncio que te fere e completa.)

Eles dois. Al mas, corpos.

Ela resolveu escrever, ele fumar um cigarro. Eram sempre assim
uníssonos-ambíguos-amantes. Não entendiam pois se entendiam demais. A
mais, sempre a mais.
'Eu te amo demais' ele dizia enquanto ela chorava o sal por dentro.
Cicatrizes queimando com o que da boca dele se fazia amor. Ele bebia
suas lágrimas por que gostava e não por que tinha sede. Ele tinha
calma que só ela sabia achar. No meio da nicotina.
'Vou começar a malhar' , ela dizia enquanto ele fumava um outro
sorriso. À noite dormiam um único sono esperando o dia de não mais
acordar.
A- cor -dar.

Ar.


'Os paralelos se encontram no infinito' C.F.A.

Modular

Escritura apagada
Sou tua transgressora
aquela que Tudo exige
Treme

Treme em mim, sopro
Cava escava abrasa
Tenho fama, pitonisa
e uma certa fundura das águas

O tempo chegou e já não estou
banhada em vemelho

Toco agora a Palavra do teu fôlego.

In estante

Somos minutos juntos
segundos grudados
Horas suadas


Somos a volta completa
do relógio.

Silêncio

Aspira teu sopro. E o meu também.
Faz disso o rito sagrado


Da respiração

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Flama

Abençoada trajetória
deste tempo lunar
que me queima

De tão grande fogo
lúmina altura quente
Atingi

O que desejas, mulher?

- Nunca apagar.

Do falar

Falar para expor a tessitura do viver.

Algo de vital.


O que acontece ao falar é o alcance. Alcançar o hiato do silêncio.
Amo quando atinjo e o silêncio brupto se faz.

Fios da oralidade, noites de Sherazade.

Luz-alabastro

O que dirão os que vierem depois de mim?


Palavras e espaços que me captam. Intervalos de insatisfação suja.
De mil palavras eu me feri. Voragens de ágata.
Sei que posso mais e a mim mesma machuco.
Outros irão ferir e amar.

Por enquanto estou só.


Absorta em luz.

Atrás do enigma

Não se pode entender a maldição que cada verso possui.
Desfrute de um amante forte que traz lascivo a língua-palavra
E esse verso que cai sobre a minha boca. Recai. Haicai.

Mandarim.

Das coisas do lá de fora



Transpor teus muros
Pecar tuas heras
De séculos e séculos
De procura


Romper teus musgos
Crestar tuas veias
Das lágrimas e teias
Poeira em poeira


Abrir tua casa escura
Cheia de suor e solidão


Tosquiar teu pensamento
Tocar tua lã

Água-me

Lava-me
Água
Lava-me



O ventre, as ancas
Cintura e delta
E as cheias
Fartas

Fonte descuidada
Altivez de gotas
Meu existir líquido



Quente textura de um rochedo



Lançam as águas,
Sobre mim, o sopro
Cobrem-me de recuos
De rios


Sou pedra e móvel
Etérea, imperfeita
Raízes fundas que tocam
As fontes



Bebe-me água
Respira meu sangue
O meu leite da carne
Transborda


Ao teu fluxo
Me estendo
Percorro encantada
Escorrendo


Lava-me

Uma carta

O que te escrevo é um resgate. Não tem ínício nem muito menos fim. É
vertiginoso, espectral.
Sente? Palavras não me saciam. Alguém me explica essa sede tamanha. No
entanto, amor, entendi. E eu sei, o que eu amo aqui. Sei bem. Estou
sentindo. Yes, amor, Vida.

Uma mulher com meus princípios, ininteligível.

Sei que o evolar dessa liberdade te atinge. Ai de mim, sempre em mim.
Meu bem, estou feliz. Simples, estou simples. Simplicidade que vem dos
mares, das águas e dos céus. Não posso viver menos e me defendo da
morte. Você sabe da minha busca. E das minhas quedas. Ela cai,
levanta, cai. Cai de novo. Levanta. Ela errava tanto.





Eu te escrevo, porque assim posso descansar.

Do procurar









A saliva e as mágoas
Da tua pensada língua
Os lábios e seus cuidados
Fugidios dentes de marfim

Descontinuum sentires
Sensualidade casta e pagã
Teu degredo, teu vazio
Da tua velada fome

Adentro-me em róseas fendas
Caio em alongadas grandezas
Da carne

Dependo do liso e das trilhas
Façanhas exatas, gastas
Teus espaços ocos
Quereres de um escuro

Assim, incorporo a ti
Foice do Nada
Sou agora rastro carmesim
Uma mulher que aspira

Buscando na tua boca, a mim

Júbilo

Errei a porta, o fluxo do sangue pulsa sentimento perdido.O último
suspiro, tantas vezes dado. Morri. Daqui posso ver grande e tudo
morreu.


Volta amanhã, vida.

Nuvens




Estou experimentando o cinza. Nunca gostei dessa cor. Gosto muito do
prata e do seu brilho de metal frio mas do cinza eu sempre fugi.
Evitava sustentar o olhar com aquela cor que ousava ser chumbo. Peso.
Intervalo. O cinza é o intervalo da cor. De uma cor a outra lá esta
ele, audaz, o cinza. Grande vontade de acréscimo e continua lá, nu, o
cinza. Ele é tediosamente nu.
Eu estou cinza ou, suportando ser cinza. Ah, não se enganem com
aquelas pessoas que dizem:' Eu gosto do cinza!'. São as que mais lutam
com a nudez.
É certo que isso é cultural, as tribos nunca usaram essa cor
repugnante pra expressar nada. Talvez soubessem do segredo que deve se
manter intacto. Só que agora eu quero. Quero o meu segredo.


Vou me despir.


O cinza é uma violentação extrema.

Dentro do coração selvagem




Uma hora e vinte minutos de fila. Em pé. Um prazer abissal tomava-me.
Em pouco tempo estaria lá, diante dEla. A chuva caía
ininterruptamente, suave. Uma multidão. Sim, uma multidão ali, em pé,
na chuva. Quem eram aquelas pessoas?


Olhei atentamente os rostos, sérios, quietos e molhados. Rostos que
sabiam, estariam diante dEla. Muitos estudantes, jovens, virgens ainda
de sonhos, alegria que doía. Gente, muita gente.


Epifania.


Em breve, pensei, seria Macabéa, ouvindo pela primeira vez Caruso
cantando "Uma furtiva lágrima". Luxo da alma.


São Paulo estava se mostrando como era, garoava a sua 'cidadice', e
frio. Ah, que friozinho. Meu cabelo já estava começando a ficar
molhado, escorriam-me algumas gotas pelo rosto, optei pela compra de
um guarda-chuva. Eram vendidos aos montes, capas de chuva também. Mas,
a capa era uma pele e eu já tinha a minha que precisava ficar exposta,
crua. Comprei. Gente simples. Um guarda-chuva simples. Protetor e bom
, como toda gente simples. Senti vontade de abraçá-lo, mostrar minha
gratidão mas, guarda-chuva não se permite abraçar, não tem pretensão
de ser gente. É coisa, modestamente coisa.


Mesmo grande, a fila fluiu e logo estava diante de um elevador grande,
onde entraram comigo as pessoas sérias. Olhos baixos, sem a ousadia de
olhar um outro olhar baixo. Quem eram aquelas pessoas?


O moço que conduzia o elevador estava devidamente trajado como um
elegante funcionário do Museu.


-Museu da Língua Portuguesa, ele dizia orgulhoso. Falava em tom de
nobreza. Nobreza que só gente simples tem.


Entrei.


Não, não estou tentando escrever bem, estou tentando procurar maneiras
de dizer. E preciso falar logo, antes que me torne enigmática demais.




-Primeiro andar, Clarice Lispector.




Estranhamente o nobre do elevador disse isso olhando nos meus olhos.
Frêmito. Em poucos segundos estaria diante, em frente, ali. Ó Deus, ai
que benção! Ai que benção! Ai que benção!




Abriu.




As pessoas saíram e pude então ver. Fotos gigantescas. Textos, por
sobre as fotos. Encaixes perfeitos sobrepostos, o mistério e o enigma.
Que mistérios tem Clarice? Ela me é insustentável e toda carregada de
afeto. Assim, ela me é. Nessa massa informe que é a sociedade, a obra
dEla é comovente. É. Comovente. Frases atordoantes se casavam com as
fotografias. Frases que eu tenho decoradas me atingiram como
relâmpagos que subitamente espocavam.


Ai, ai de mim. Puta que o pariu Clarice, puta que o pariu.


Mais à frente , em um corredor até que estreito, as pessoas...muitas
pessoas, num silêncio de gado apascentado que a qualquer momento
estoura a cerca, andavam, naquele corredor. Bem, o corredor. Nele
havia vários monitores que mostravam a imagem de outras pessoas lendo,
em voz alta, obras dEla. Sentei e ouvi. Só. Ambientação intimista e
pessoas falando por Ela. Estremeci.


Quem eram aquelas pessoas?


No final do corredor, as tão faladas gavetas, onde algumas se abrem,
outras não e outras ainda permanecem semi-abertas. Revelação,
mistério, enigma. Outra vez. Ousei, cheguei abrindo de súbito, se
parasse talvez não abriria. Cartas, notas, manuscritos, recortes e
documentos da sua vida profissional e pessoal. Originais!... Ar...
falta de ar... Não se via a preocupação de explicar a sua obra ou as
suas influências, o que tinha ali era Ela. "Não se perde por não
entender". Não, Clarice... não se perde, obrigada. Sonhei provocar um
sorriso. Sucedeu que então não mais me contive: comecei a tocar as
fotos, os textos, as palavras, o caminho de Tchetchelnik ...


Eis-me, por um momento acreditando na salvação humana. As pessoas,
sérias, molhadas e quietas.
Quem eram aquelas pessoas?


Sofri um ligeiro sobressalto e só então percebi. Passei a mão nos
cabelos louros numa tentativa de pentear o espanto.




Aquelas pessoas eram 'eu'

Meus morcegos





Hoje, estou num dia "desses". Um dia em que insisto em me encontrar.
Já tentei de todas as formas evitar esse encontro, nada. Nada evita,
em qualquer lugar que eu entre, lá estou, me vejo. Estou me
perseguindo desesperadamente. Uma ânsia única e voraz que me consome.


Lembrei-me dos cálidos morcegos cegos.
Os morcegos se escondem nos telhados escuros. São cegos, imaginem,
nada poder ver. À noite, se recolhem ritualisticamante nos telhados,
escondidos da vida. Mas onde se escondem os homens? Onde me escondo? A
óptica de um morcego-homem, transmutada. Eu.
Vivo voando a vida inteira no escuro, chocando-me contra as paredes
brancas do amor. Dói. O choque.
Estes morcegos chupam o nosso sangue.
Já busquei meu travesseiro, deitei nele minha vida ofendida.
É.
Acho melhor eu conservar os meus morcegos entre minhas paredes, debatendo-se
cegos.
Cegos como nós.

Seguidores

Quem sou eu

Minha foto
O desconexo me elucida. Sinto um prazer de sábado quando sinto o aroma da loucura. Sei que não é fácil. Sei. Às vezes eu queria não saber e ter a benção da lucidez. No entanto eis-me aqui, forjada, leoa, musa de fogo. Ouro, olhar, branco, bracelete, unha vermelha.