Invisíveis cantos.

quarta-feira, 17 de março de 2010

O primeiro lírio



Vou falar de mim. Sou antiga. E é preciso que se saiba que quando eu falar serão palavras lentas e inteiras. Nasci sabendo do meu caminho útero-âmnion-ânima. Tomei goles do líquido antes do fôlego inicial. Chovia e o hospital estava sem luz, geradores não conseguiram manter por muito tempo o controle vital para se ver. Têm coisas que só se captam no breu, pois escapam à luz, talvez seja por isso que escapulo e consigo vagar por campos distantes, os de dentro. É necessária a cegueira para se ver lírios. De lírios. Nasci com o rosto nu e à luz de velas. Logo, as velas chegaram em minha vida antiga. Tal qual a Taverna para Azevedo. Chovia muito e as águas amendontraram minha mãe. Talvez seja por isso que o mar aberto me amedontra tanto. Água funda e parada me congela o sangue em medo. Confidências. Eu vejo o que está ao fundo rocha-vulcânica, o núcleo neutro de onde está o húmus. Os campos necessitam de águas. Nasci na tempestade entendendo que as paradas cardios respiratórias de minha mãe me levariam ao sopro. Sopro palavra que descubro enfim, na respiração das falas, que hoje desde sempre, me salvam. Entendi-me humana nesse ponto. E entendi-me nos campos. Alheios de tão meus. Certa feita fiz um estudo astral e disseram meu umbigo ser oito, o número. Logo pensei no infinito mas era sofrimento, o materno. Um lírio para minha mãe. Sem surpresas, segui. Sempre esquiva, por saber sentir. Sensibilidade num mundo bruto é peso. Lírios que se penduram nas pedras de cachoeiras escapulam peso de pedreira. Meu olhar fecha e abre sem ser o piscar dos olhos, e sim silêncio.  Risos. Meu silêncio é abusado, ele ri, brinca e até o meu irritável é querido. Gostam de mim. Fato. Gostam. A insuportável adorável, paradoxalmente. A insuportabilidade vem do fechar e abrir nos intervalos da vida, intervalos que podem durar meses tanto quanto podem durar fragmentos de segundos. Mas são perceptíveis. Incomodam e apaixonam, não respectivamente. Os lírios. Um ou outro, raros os dois. Mas amizade é rara e isso me deixa comovida. Cresci sorrindo e sabendo a mais do esconde-esconde e mãe-da-rua, adolesci mundo, o dos Anjos, Poe, Pessoa, Clarice, Cecília, poesia. Então foi aí. [pausa]. A Poesia. Foi através da Poesia que entendi por onde meu intervalo do abrir fechar vagava campos. Descobri-me olho nos campos nus e percebi porque incomodava e porque apaixonava pessoas. Era o nu dos campos alheios que consigo vagar. Os campos delicados, os peitos nus. Lírios e levezas no peito meu. Sensibilidade peso. Fresta de rochedo, terra, aberta em mim. O meu atalho. Peso. Existe a raiva, é o preço, de perceberem pés descalços colhedores em teus campos sacros dolores escuros, inférteis. Estes que eu, os da minha espécie adentram. É inevitável. Mas nos campos fechados também existem  árvores com sombras frescas. Pertenço enfim, dentro da minha condição humana.

Sou uma antiga camponesa colhedora de lírios.

Um comentário:

  1. Somente mãos camponesas podem depositar uma flor no meu caminho.

    "Ahhhhhhhhhhhhlecrim...!"

    Insuportávelmente amada.

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O desconexo me elucida. Sinto um prazer de sábado quando sinto o aroma da loucura. Sei que não é fácil. Sei. Às vezes eu queria não saber e ter a benção da lucidez. No entanto eis-me aqui, forjada, leoa, musa de fogo. Ouro, olhar, branco, bracelete, unha vermelha.