Invisíveis cantos.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Carta para dois olhos



Existem em todo o homem, a todo o momento, duas postulações
simultâneas, uma a Deus, outra a Satanás. A invocação a Deus, ou
espiritualidade, é um desejo de elevar-se; aquela a Satanás, ou
animalidade, é uma alegria de precipitar-se no abismo.

Charles Baudelaire







Essa é uma carta de amor. Limpe todas as energias drummondianas da tua
aura e me leia. Ou ouça. O que vou contar é sobre um olho e mais um,
formando dois. Dois olhos que enxergam juntos tudo que pode ser
visto. E também aquilo que não se vê. Dois olhos, um de cada um.
Entendem? Não é tão fácil explicar aquilo que muito pouca gente tem,
sequer sonha possuir, pela própria imagem subjetiva imposta pelas
telas podres da mídia explicando o amor de novela das oito.
Bem  mas aí é papo para jornalista que precisa ascender logo e descolar um emprego engessado na globo. Sempre achei que somente com nossos olhos podíamos sentir o mundo e que bastava, e
que era lindo. Mas não, o mundo visto pela ótica tua-minha é maior.
Quando nossos únicos dois olhos vêem, o mundo se faz intenso demais como
uma café forte que abraça. É isso, nos sentimos abraçados pelo amor. O
amor nos cobre quando nossos dois olhos estão no mesmo rosto. Quando
você tem dois olhos, você pode ver a chuva cair nas folhas do limoeiro
à tarde, em uma rede. Só com esses dois olhos chove. Você que já foi
chovido molha o que eu digo agora.
Quando você tem dois olhos você
pode ter dois quartos que depois se tornam um. E nesse quarto, com
seus dois olhos você chora Modigliani caindo o pano de Jeanne, nua de
olhos-alma-toda, até mesmo a epifania de Utrille ao terminar a obra
e, aí rirmos depois das lágrimas. Dos nossos dois olhos. Quando você
tem dois olhos você pode ver além das grades da jaula, pode então ver
o que não se vê, olhando o olhar estático de tão humano dos macacos num zoológico de
um momento ilógico ( e porque?) da tua vidinha de domingo oco. Quando
você tem dois olhos você se transfigura em claricecortazar na cama, no
quarto de quatro, tal qual Jesus no Monte das Oliveiras transfigurando
Moisés e Elias para um bando de apóstolos cegos. E por tocar em
cegueira vou também ao desespero de quando se tem dois voltar ao um.
Você pode gritar pupilas novas, buscar enlouquecido no teu baú
sujo-casa-escura de memórias outro olho. O outro olho nunca está lá, nunca esteve,
porque ele só acontece uma vez. Deprimente essa vasculhação no
passado pensando: ' sim, eu tinha um outro aqui que me servia,
onde-foi-parar?' De repente você foca para frente e a luz-breu não te
mostra nada. Sim, o novo é nada para quem tem um olho arrancado.
Quando se arranca um olho de dois se lesa o nervo e, qualquer babaca
que tem um curso merda-superior-incompleto sabe: um nervo-olho-dois
destruido nunca mais recupera a visão-dois. Eu tinha subido a montanha
quando um olho me foi arrebatado. Arrebatamento me fez subir tal feito
a expressão, tinha morri do subir montanha. O pico mais alto do
estado. Deus, eu te quero tanto. Não me achem insuportável se fico dizendo
essas coisas e sei que-li-lispector-demais. Não existe esperança verde
para quem dois olhos teve e não soube. O que quero contar é que já
tive dois olhos.

Hoje, só me resta um.

2 comentários:

  1. Lindo teu espaço! Desejo voltar aqui com bem mais calma e poder degustá-lo para sentir as nuanças dos teus textos.

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O desconexo me elucida. Sinto um prazer de sábado quando sinto o aroma da loucura. Sei que não é fácil. Sei. Às vezes eu queria não saber e ter a benção da lucidez. No entanto eis-me aqui, forjada, leoa, musa de fogo. Ouro, olhar, branco, bracelete, unha vermelha.