Invisíveis cantos.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Dentro do coração selvagem




Uma hora e vinte minutos de fila. Em pé. Um prazer abissal tomava-me.
Em pouco tempo estaria lá, diante dEla. A chuva caía
ininterruptamente, suave. Uma multidão. Sim, uma multidão ali, em pé,
na chuva. Quem eram aquelas pessoas?


Olhei atentamente os rostos, sérios, quietos e molhados. Rostos que
sabiam, estariam diante dEla. Muitos estudantes, jovens, virgens ainda
de sonhos, alegria que doía. Gente, muita gente.


Epifania.


Em breve, pensei, seria Macabéa, ouvindo pela primeira vez Caruso
cantando "Uma furtiva lágrima". Luxo da alma.


São Paulo estava se mostrando como era, garoava a sua 'cidadice', e
frio. Ah, que friozinho. Meu cabelo já estava começando a ficar
molhado, escorriam-me algumas gotas pelo rosto, optei pela compra de
um guarda-chuva. Eram vendidos aos montes, capas de chuva também. Mas,
a capa era uma pele e eu já tinha a minha que precisava ficar exposta,
crua. Comprei. Gente simples. Um guarda-chuva simples. Protetor e bom
, como toda gente simples. Senti vontade de abraçá-lo, mostrar minha
gratidão mas, guarda-chuva não se permite abraçar, não tem pretensão
de ser gente. É coisa, modestamente coisa.


Mesmo grande, a fila fluiu e logo estava diante de um elevador grande,
onde entraram comigo as pessoas sérias. Olhos baixos, sem a ousadia de
olhar um outro olhar baixo. Quem eram aquelas pessoas?


O moço que conduzia o elevador estava devidamente trajado como um
elegante funcionário do Museu.


-Museu da Língua Portuguesa, ele dizia orgulhoso. Falava em tom de
nobreza. Nobreza que só gente simples tem.


Entrei.


Não, não estou tentando escrever bem, estou tentando procurar maneiras
de dizer. E preciso falar logo, antes que me torne enigmática demais.




-Primeiro andar, Clarice Lispector.




Estranhamente o nobre do elevador disse isso olhando nos meus olhos.
Frêmito. Em poucos segundos estaria diante, em frente, ali. Ó Deus, ai
que benção! Ai que benção! Ai que benção!




Abriu.




As pessoas saíram e pude então ver. Fotos gigantescas. Textos, por
sobre as fotos. Encaixes perfeitos sobrepostos, o mistério e o enigma.
Que mistérios tem Clarice? Ela me é insustentável e toda carregada de
afeto. Assim, ela me é. Nessa massa informe que é a sociedade, a obra
dEla é comovente. É. Comovente. Frases atordoantes se casavam com as
fotografias. Frases que eu tenho decoradas me atingiram como
relâmpagos que subitamente espocavam.


Ai, ai de mim. Puta que o pariu Clarice, puta que o pariu.


Mais à frente , em um corredor até que estreito, as pessoas...muitas
pessoas, num silêncio de gado apascentado que a qualquer momento
estoura a cerca, andavam, naquele corredor. Bem, o corredor. Nele
havia vários monitores que mostravam a imagem de outras pessoas lendo,
em voz alta, obras dEla. Sentei e ouvi. Só. Ambientação intimista e
pessoas falando por Ela. Estremeci.


Quem eram aquelas pessoas?


No final do corredor, as tão faladas gavetas, onde algumas se abrem,
outras não e outras ainda permanecem semi-abertas. Revelação,
mistério, enigma. Outra vez. Ousei, cheguei abrindo de súbito, se
parasse talvez não abriria. Cartas, notas, manuscritos, recortes e
documentos da sua vida profissional e pessoal. Originais!... Ar...
falta de ar... Não se via a preocupação de explicar a sua obra ou as
suas influências, o que tinha ali era Ela. "Não se perde por não
entender". Não, Clarice... não se perde, obrigada. Sonhei provocar um
sorriso. Sucedeu que então não mais me contive: comecei a tocar as
fotos, os textos, as palavras, o caminho de Tchetchelnik ...


Eis-me, por um momento acreditando na salvação humana. As pessoas,
sérias, molhadas e quietas.
Quem eram aquelas pessoas?


Sofri um ligeiro sobressalto e só então percebi. Passei a mão nos
cabelos louros numa tentativa de pentear o espanto.




Aquelas pessoas eram 'eu'

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O desconexo me elucida. Sinto um prazer de sábado quando sinto o aroma da loucura. Sei que não é fácil. Sei. Às vezes eu queria não saber e ter a benção da lucidez. No entanto eis-me aqui, forjada, leoa, musa de fogo. Ouro, olhar, branco, bracelete, unha vermelha.